quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Com a palavra o Senhor R.M.

Duas ou três coisas sobre Um Náufrago que Ri
Entrevista concedida ao jornalista e escritor Flávio Izhaki


Como você chegou à decisão de usar um gato critico e irônico como narrador do livro?

Antes de ser crítico e irônico e, não esqueçamos, estoico, Ravic é um gato. Gatos, como sabemos, não falam e nem pensam a não ser em narrativas fabulares e em filmes inesquecíveis de Walt Disney. Gatos são, por essa razão, basicamente criaturas fantasiosas e que emblematicamente representam o onírico mundo da nossa imaginação.
Quando pensei em colocar um gato como o grande narrador do meu romance (que tem como personagem principal Antonio Martiniano, um herói trágico típico dos anos zero-zero, jornalista em crise profissional, pessoal e existencial abissal) quis mexer com esse paradoxo. Quis flagrar, dialeticamente, esse choque e, ao mesmo tempo, essa interpenetração entre o mundo imaginário – (no qual um gato poderá falar, pensar, emitir opiniões, adorar Philip Roth e Ivan Turguêniev, se apaixonar, e, basicamente, ser profundamente crítico em relação ao estar-no-mundo) – e o mundo real no qual o personagem Antonio Martiniano se digladia, se atormenta, se atola, se parte em mil cacos, e se desespera.
A idéia foi tentar colocar no mesmo diapasão a dramaticidade presente em escritores como Graciliano Ramos, Dostoiévski, Turguêniev, Balzac e Henry James (dos quais sou contrito e devoto leitor) e a fantasia desvairada dos desenhos animados de Walt Disney (dos quais fui contrito e devoto consumidor nos meus tempos de criança; Mr. Disney foi, com certeza, o meu primeiro, e definitivo, contato com o imaginário).
Ou seja, Um Náufrago que Ri, quer navegar, sem naufragar, entre a realidade e a fantasia, entre a memória e a invenção.
Outra camada dessa interface entre a realidade e a fantasia, entre a invenção e a memória, é o fato de que esse gato Ravic, que se tornou o grande narrador do meu romance, é claramente inspirado em gato homônimo com quem convivi, e a quem amei profundamente, entre 2001 e 2005, e que, como o gato do livro, também morreu de câncer.
Enfim, Um Náufrago que Ri, pretende ser bem urdido patchwork que costura fragmentos do real e do imaginário – aliás, assim é a vida-como-ela-é de todos nós neste fim da primeira década do século 21: lisérgico caleidoscópio de emoções baratas mancomunadas e intrincadas com tragédias transcendentais.
Depois de definido o narrador (embora eu deva admitir que tente confundir o leitor durante todo o decorrer do romance, insinuando outras possibilidades de narrador), quis criar um gato-narrador que, mais que onisciente e onipresente, fosse a consciência crítica do personagem central e, por tabela, do próprio autor. Alguém que, diante do drama vivido por Antonio Martiniano, fosse capaz não de lhe perdoar todos as falhas trágicas, mas alguém que estivesse disposto a lhe apontar as feridas e as chagas (não com a idéia de lambê-las e de perdoá-las, mas no sentido de expô-las e de explicá-las à luz da razão possível).
Em nenhum momento pretendi que o leitor sentisse pena (um dos piores sentimentos humanos) de Antonio Martiniano. Por meio da ironia e da mordacidade de Ravic, quis sim que o leitor menos se compadecesse do drama de A.M. e mais se escandalizasse com o jeito algo apatetado e desajeitado com que a personagem lida com as diatribes e as misérias desses tempos apocalípticos nos quais vivemos.
Nada melhor para corporificar esse narrador-crítico-irônico do que um gato, afinal os gatos têm aquela lendária (e justificada) fama de serem independentes e de fazerem o que querem e bem entendem – ao contrário dos cachorros que têm aquela fama lendária (e justificada) de serem coniventes e de se submeterem sempre aos caprichos do dono e senhor.

O tema da autoficção está muito presente nos últimos debates literários, até pelo sucesso de público e de crítica alcançado por O Filho Eterno, de Cristovao Tezza. O que pensa sobre o assunto, já que até um certo jornalista Rogério Menezes é citado em seu romance?

A expressão autoficção é banal, boba, e completamente redundante (toda a ficção é basicamente autorreferencial; de Balzac a Paulo Coelho; de Cristóvão Tezza a Rogério Menezes). Logo, não vejo motivos para que o tema possa virar assunto recorrente de papos-furados em rodas de escritores ou em debates acadêmicos, daqui ou d’além-mar.
O francês Gustave Flaubert, um dos dez maiores escritores de todos os tempos em qualquer cânone, insistia em lembrar a respeito de uma de suas personagens mais imortais: ‘Madame Bovary c’est moi!’ Quando dizia isso, pretendia pensar menos literalmente (e micro) e mais abrangentemente (e macro): na verdade queria revelar o quanto todos os personagens que criamos nos romances que escrevemos têm a ver com a nossas vivências e com os nossos mundos interiores e exteriores.
O israelense Amós Oz, um dos três grandes escritores vivos do planeta hoje (os outros dois são o americano de ascendência judaica Philip Roth e o turco Orhan Pamuk) resume bem essa falsa questão da autoficção: em literatura tudo é invenção, ou nada é invenção; ou tudo é verdade, ou nada é verdade.
Minha opinião pessoal: insistir nesse tema meio bizantino é perda de tempo e demonstra certa tendência que temos de dissertar sobre o óbvio por parte da nossa, digamos, elite pensante. Afinal de contas, na literatura, desde sempre, seja quando estamos inventando, seja quando estamos falando a verdade, estamos falando de nós mesmos.
Em Um Náufrago que Ri, levo essa abençoada promiscuidade entre verdade e mentira, memória e invenção, real e imaginário, a extremos, fundindo-as e confundindo-as o tempo inteiro. Aliás, não faço nada mais que a minha obrigação – todos aqueles que pretendem se tornar alguma coisa que preste em termos de literatura devem chafurdar entre esses dois mundos que, longe de serem antagônicos, se complementam e se interpenetram.

Você pensa em um leitor ideal para este romance? Quem seria?

Ontem, zapeando pela tevê cabo, flagrei fiapo de conversa de Miguel Falabella com certo entrevistador. O ator dizia a respeito dos personagens que gostaria de interpretar, algo mais ou menos assim: ‘Tudo aquilo que é humano e que se move me interessa’. Penso algo parecido em relação a um eventual leitor para o meu romance. Todo ser humano que goste de ler me interessa, quer se mova ou não, quer seja brasileiro ou estrangeiro, quer seja gay ou heterossexual, preto ou branco, azul ou amarelo, michael-jacksons ou marias-callas.
Nunca cheguei a acreditar em literatura gay, mas alguns leitores insistiram em dizer que o meu segundo romance (Três Elefantes na Ópera, Record, 2001) seria literatura gay – e não gostava nem um pouco quando ouvia essa rotulação. Nada contra ou a favor dos gays (ser contra ou a favor de algum comportamento sexual já revela certo faccionismo e certo reducionismo que não me interessam), mas não quero escrever para esse ou aquele grupo social ou sexual – quero escrever , ambciosamente admito, para todos os seres humanos, que se movem ou não.
Antonio Martiniano, o herói trágico de Um Náufrago Que Ri, é homossexual, e talvez esse fato faça com que aqui e ali alguém possa dizer que volto a escrever literatura gay. Mas o que me interessa em Antonio Martiniano (e, espero, o que interessará também ao leitor) não é o fato de ele ser ou não ser gay (ou de gostar ou não gostar de azeitonas verdes ou de torta de limão, por exemplo), mas o fato de ser personagem em trágica dissonância, em colisão frontal, com os horrendos tempos em que vivemos hoje no planeta Terra.
Também não pretendo ser aquele escritor que quer ser acima de tudo nacionalista e que bate no peito e se jacta de escrever literatura brasileira, como se escrever literatura tenha mais a ver com geografia do que com sentimentos. Acredito, e quero investir cada vez mais nessa crença, que posso escrever livros que interessem tanto a leitores que morem em São Paulo quanto a leitores que vivam em Jerusalém, Calcutá, Nova York, Beirute ou João Pessoa.
Na verdade, é sempre bom lembrarmos, não é apenas o Brasil, ou apenas o brasileiro, que está em crise nesse torpe início do século 21. O que está pela bola-sete atualmente é o ser humano como um todo, é o planeta com um todo. Logo, meu sonho dourado, e talvez inalcançável, é escrever de maneira ampla e compassiva o suficiente para escrever não apenas literatura-brasileira, e sim para simplesmente escrever literatura – se boa ou má só a posteridade, se houver posteridade, dirá.
Na autobiografia De Amor e Trevas, o escritor israelense Amós Oz diz o que considera ser o bom leitor: aquele que não procura saber o que há em comum entre o autor e os personagens que criou; mas sim o que haverá de comum entre os personagens que o autor criou e ele, o leitor. Penso dessa mesma forma.

Algumas das personagens têm as doenças mais aterrorizantes de nossa época, câncer e AIDS. Ao mesmo tempo, algumas deles têm crenças no sobrenatural criticadas pelo gato-narrador estoico. Qual a sua intenção em cruzar tais temas em sua ficção?

Câncer e Aids continuam matando, mas, para o bem e para o mal, já se incorporaram às nossas vidas. Meu pai e minha mãe morreram de câncer; ele em 1988; ela em 1976. Nos anos 80 pelo menos três amigos morreram de Aids. Durante o processo de preparação e de escrita de Um Náufrago Que Ri, o meu melhor amigo morreu de câncer linfático (em dezembro de 2005) e o meu melhor gato-amigo também morreu do mesmo mal (em fevereiro de 2006). Além disso, ex-namorado e atualmente amigo queridíssimo se descobriu soropositivo em 2002, mas, devidamente tratado com doses diárias de medicamentos que pega gratuitamente em hospitais públicos, e, se tudo der certo, deverá viver até os 100 anos. O mesmo acontece com metade da torcida do Flamengo e do Corinthians juntas.
Enfim, essas doenças aterrorizantes da nossa época continuam aterrorizando – mas fazer o quê? Pedir para que parem o mundo para que possamos descer? Doenças aterrorizantes e guerras aterrorizantes não são marcas específicas dos tempos recentes. Sempre existiram. Há algum tempo li romance extraordinário do autor alemão Jonathan Littell: As Benevolentes, história passada na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa leitura pude mais uma vez constatar como os berlinenses enfrentaram galhardamente as bombas que lhes caíam diariamente sobre as cabeças. Pensemos no Rio de Janeiro hoje: vivemos em guerra? Vivemos. Mas alguém deixa de sair de casa, de ir ao cinema, de namorar, por temer ser atingido por alguma bala perdida?
De alguma forma, quis falar sobre isso em Um Náufrago que Ri, e, nesse sentido quem me dá voz é o irônico e estoico Ravic. Enquanto Antonio Martiniano se dilacera em dores profundas, o seu gato de estimação dá de ombros e se diz a todo instante: ok, esse é o pior dos mundos, ora bolas, mas é o que temos.
Eu, Rogério Menezes (que não paro de me impressionar em como o mundo mudou para muito pior nos últimos tempos), posso até pensar eventualmente em me matar – quem nunca pensou que atire a primeira pedra! – mas até agora não me matei, e acho que nunca me matarei: à la Ravic, sempre concluo e sempre concluirei: ok, esse é o pior dos mundos, ora bolas, mas é o que temos – e sigo e seguirei estoicamente em frente.
Resumo da ópera: eu e o Ravic somos (ou tentamos ser) náufragos que riem.
Evidentemente, nem todos enfrentam as diatribes da sorte desses tempos bicudos (e esses tempos estão bicudos para quase todo mundo) dessa maneira estoica e raviquiana, e apelam para todos os santos, seitas, mandingas e livros de auto-ajuda que estiverem mais ao alcance da mão. Não os culpo. É difícil encarar esses torpes tempos sem alguma religião nos servindo de muleta. Daí a explosão de todos esses esoterismos que nos assolam hoje em dia. Daí a explosão de esoterismos que assolam alguns dos mais apaixonantes personagens de Um Náufrago Que Ri.

Você já publicou livro de crônicas, romances, biografias e entrevistas. Como é trafegar por registros narrativos tão diferentes?

No meu caso, trafegar por registros narrativos tão diferentes como você, elegantemente, prefere chamar não foi exatamente uma opção. Essa trajetória algo errática é na verdade resultado das muitas trapaças da sorte que a vida nos traz.
Para sobreviver já escrevi (e voltarei a escrever quantas vezes forem necessárias) livros institucionais nada transcendentais e biografias não exatamente espetaculares, mas a vida precisava seguir em frente – e a vida sempre precisará seguir em frente.
Navegarei quantas vezes forem necessárias por esses registros narrativos tão diferentes e tão díspares (o estoicismo de Ravic acabou me contaminando), – mas, aos 55 anos, confesso: quando crescer o que quero mesmo é escrever mais e melhores romances.

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